quarta-feira, 10 de junho de 2009

Herança


“Homem, carne sem luz, criatura cega
Realidade geográfica infeliz,
O universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz”
Augusto dos Anjos, Homo Infimus.

Sabe o escritor? Aquele velho moribundo. Ele pode nos contar sua história. Pensava na eternidade, pobre. Agora tudo vai com ele para o caixão. Falarei desta sufocante viagem.

Este homem viveu para literatura. Suas últimas palavras foram Shakespeare. Disse “somos feitos da matéria dos sonhos” e dormiu para sempre. E falou antes. Cada noite dormida é uma morte, parte não vivida, abandonada à sorte dos sonhos e pesadelos. E eu, tenho as noites repletas de vilões, ausente de heróis e mocinhas. Falou mais. Antes de dormir, uma agonia. Toda vez era desse jeito. Se entregava ao cansaço muito tarde. Teimoso. Vinte minutos e já acordava. Pergunto se dá para viver assim, sem dormir e com medo desse jeito.

Chegou sem preparativos. O velho não falava. Respondia com Dostoievski “minha história? Mas quem lhe disse que eu tenho história?”. Ria muito por entre os bigodes. Passava a mão na careca. Não entendia isso. De onde veio? Para onde vai? Estas dúvidas me atormentavam. Nunca chegaram a perturbar o velho. Pobre de mim.

Hábitos estranhos. Considerava o “jejum a coisa mais fácil do mundo”, um tanto Kafka, não preparava, degustava ou defecava. Não tinha mulher, filho ou parentes. Como pôde viver assim, sem comer, sem família? Ele bebia muito. Um vinho, um chá, um café, qualquer coisa. Tava sempre com a garrafa. Mas nunca bêbado. Pura contradição e agonia.

Não gostava de ficar perto dele. Ouvia inventar estórias. Sentado na praça. Com os meninos da rua. Via escrever. Suspirar. Fechar os olhos com força. Voltar a escrever.

Todo dia eu estava lá. Escondido para ouvir. E lá o velho doido mexia o bigode. Ouvíamos. Contou sobre uma infância. Podia não ser a dele, mas para a gente era. Quando nasceu, uma corja assolava seu país. Foi concebido num ato violento. Odiado pelo pai. A mãe só chorava. Todos riam deles. Sobreviveu a dois abortos. Foi jogado no mato. Mas como filho do mal-acabado, voltava. Tentou ser um bom filho. Mas era para seus pais, dor, culpa e medo. Surrado, pedia perdão. Se casou com a filha do mercador.

E não falou mais. Assustou. Deixou curioso. E o corpo dele está ali. Na cama fedendo. Se a história fosse dele, tinha aparecido alguém. Mas o velho não tem história dele. Só algo a contar. De alguém.

Mas como posso pensar nele? Louco, pobre e velho. Não me convenceu do contrário. Não quis. Toda vez que sentava, todos ouviam. Contou a história de um jovem de trinta anos. Tinha esposa e a deixava para ir trabalhar. Um dia viu o demônio sobre ela. Matou o inimigo. A mulher já estava morta. Fugiu e se escondeu. Virou velho escritor, pensei. Ninguém sabe. Morreu sem dizer.

Não contou mais nada. Mas sei como ele morreu. Colou a ultima folha na parede. Mil, contei ainda há pouco. Andou pelos campos. Acompanhamos por muito tempo. Sumiu de nossa vista. Despencou num abismo. Ficou desfigurado pelos ferimentos. E a cara de dor. Carregamos para casa. Infelizmente fiquei para cuidar do velho. E não sei por quê. Não pergunte.

Desejei sua morte, confesso. Já tava todo inchado e sem pêlo. Pedia para morrer. Gritava de noite. Pediu, eu fiz. Li muito para ele. Assim o velho se acalmava. Acompanha a leitura pela memória. Passei a gostar do velho. Dos livros dele. Do que ele fazia. Quando morreu, juntei todas as folhas da parede. Fiz uma gulodice:

Comprei mil folhas em branco e cola. “Sou uma sombra!”

Defuncti




Sou um homem morto.
Não porque alguém matou.
Nunca fui outra coisa.
Já tentaram me matar
Mas não se pode.
Sempre fui homem morto.
Quando passava nas ruas
Via as pessoas me olharem.
Mesmo não me vendo,
Nunca poderiam se livrar.
Apesar de tudo isto
Tenho sido convocado.
Já que não tenho nome.
Chamaram pelos mais variados
Mas só gostei d’um.
Só me deixo chamar por R..

Gosto de mangas longas.
Para esconder marcas.
Da tortura.
Do tempo.
Da memória.
De você.
Escondo cortes.
Arranhões.
Queimaduras.
No pulso.
Na barriga.
De tédio.
De amor.
Amei pouco.
Aparentei muito mais do que senti.

Suava muito.
O calor me matava mais.
Assim como a chuva.
Nada mais.
Logo ficava fedendo.
Todos fugiam para longe.
Sentado sozinho.
Solitário e feliz.
Mortos fedem
Fedem demais.

Não se fala mal dos mortos.
É verdade.
Mas de mim falavam.
Porque não me conheceram.
Porque sempre fui morto.
Defunto impertinente.
Me odiavam por isso.
Mesmo morto,
Nunca fui santificado.

Defunto.
Nunca tive estória.
História. Velório.
Nem uma reza.
Por isso ando por aqui.
Não vejo graça nenhuma na morte.
Nem na outra coisa.
Vejo nos rostos deles.
Tão mortos quanto eu.

Os mortos não dormem.
Abrem os olhos.
Permanecem no escuro.
Pensando sem dormir.
Esperando o dia nascer.
Que Demora muito.
Parece não chegar, mas chega.
De dia fingimos que somos outros.
Que não estamos mortos.

Esta maldição não é minha.
É sua.
Fadada a me acompanhar.
Morto e revirando na cama.
Sem conseguir te olhar.
Te admirar.
Como sempre quis.
Já foi alguma vez?
Todos mortos.
Só eu que sei de tudo isso.

Irônico.
Acordo e visto roupa.
Não me importo.
Mesmo nu não me importo.
Reclamo de tudo.
Reclamo de mim.
Mesmo sem espelho,
Reclamo.

Sento sozinho na praça.
Porque sou fedorento.
Começo a pensar.
Leio. Escrevo.
Ouço as estórias dos outros.
Finjo me importar.
Mas, coisa nenhuma importa
Pessoa;
Cidade;
Verdade;
Pois não nasci para nada.